terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Travessia milagrosa de 75 anos no planetinha azul - James Pizarro (página 4 do Diário de Santa Maria, edição de 2.1.2018)



Travessia milagrosa de 75 anos no planetinha azul

02 Janeiro 2018 13:31:00

Como por milagre, não torci o pé nem fui agredido ou assaltado no Calçadão da minha querida cidade



Como por milagre, eu vi procissões. E vultos através da vidraça. E maçãs maduras caindo do pé. E um sol que se levanta.
Como por milagre, eu senti cheiros antigos. E revi faces amigas. E lembrei de rostos mortos. E aprendi a dizer não. E aprendi a dizer sim.
Como por milagre, eu salvei náufragos. E eu mesmo - como por milagre - cheguei à praia. E escutei discussões sem delas participar. E ouvi queixas. E fiz queixas. E se queixaram de mim.
Como por milagre, fiz um poema. E ergui paredes. E fixei quadros de crianças. E sonhei com meus pais e sogros mortos. E visitei seus túmulos.
Como por milagre - metamorfose inexplicável -, fui segunda-feira. E me transformei em sábado também. E consegui ser domingo.
Como por milagre, busquei - alcancei - o Sul. E busquei o Leste. E fugi para o Oeste. E como por milagre não pressenti o Norte.
Como por milagre, passei por tardes loiras. E conheci o amor. E acompanhei cardumes. E me perdi com eles. E achei um cavalo-marinho. E recolhi conchas. E me transformei em faca. Em anzol. E rede.
Como por milagre, uma sereia falou comigo. E gaivotas drogadas voavam por sobre meus cabelos. E estive em terras longínquas. E ouvi morteiros ao entardecer. E o napalm queimou minha pele de pecador. E toquei tambores de guerra. E fumei o cachimbo da paz.
Como por milagre, andei por estepes desoladas. E descampados verdes. E desci ao fundo das minas. E naveguei por mansos canais azuis. E por mais de uma vez sonhei com Prado Veppo. E com Pedro Freire Junior. Que me sorriam amável e alegremente. Como sempre me fizeram em vida.
Como por milagre, nasceu Bethânia, minha sexta neta. E outros dois netos se formaram no Ensino Fundamental. E outra completando Ensino Médio. E mais dois netos avançavam na universidade rumo à formatura.
Como por milagre, mais um ano sem ter erisipela. E por doze meses suportei silenciosamente a flauta gremista (por estar meu amado Colorado na Série B). E fiquei calado - como por milagre - quando o Real Madrid foi campeão, respeitando civilizadamente a dor azulada do adversário que, onipotente, prometia acabar com o planeta.
Como por milagre, não torci o pé nem fui agredido ou assaltado no Calçadão da minha querida cidade. E meus salários de aposentado foram depositados integralmente no segundo dia útil de cada mês.
Como por milagre, completei 51 anos de casamento ao lado da mesma companheira que a bondade divina me destinou. E que me entende. Estimula. Suporta. Faz meu braço se transformar em tacape forte para quebrar rochas duras. E sobre o bom senso dela se alicerça toda a estabilidade da família pizarrônica. Agradeço a Deus todas as noites por isso.
Como por milagre, estou indo para os 76 anos em 2018. Em companhia de todos vocês: desde a direção, repórteres, funcionários até os prezados leitores.
Que Deus dê a todos muita saúde, glória alta e compreensão entre os homens!

Nenhum comentário: