terça-feira, 21 de novembro de 2017

LÁGRIMAS E SAUDADE ESCORREM PELOS TRILHOS DA VIAÇÃO FÉRREA - JAMES PIZARRO (crônica publicada em 21.11.2017 no Diário de Santa Maria)

A gare da estação da Viação Férrea do RS foi local frequentado pela elite da sociedade santa-mariense, por mais incrível que isso possa parecer hoje aos mais moços, testemunhas da decadência da categoria ferroviária. Ali estavam os escritórios das chefias. A sala do diretor da estação (chamado de "Agente"). O amplo e completo "stand" de revistas (a chamada "Revistaria da Estação"). O higiênico e confortável restaurante, onde serviam-se desde refeições "à francesa" até rápidos lanches. A fantástica sorveteria com inimagináveis guloseimas servidas em finas taças de prata. O competente serviço de carregadores de bagagens ("mensageria"), com os servidores vestidos de azul, com colarinho e gravata, portando carrinhos de ferro para o transporte das malas. O serviço de autofalantes com as publicidades (chamadas "reclames") ditas por um locutor cego, que tinha a fantástica capacidade de memorizar tudo. Entre um "reclame" e outro, valsas de Strauss e sambas de Ary Barroso...


Para ter acesso à gare da Viação Férrea, era necessário comprar ingresso. Vendido sob a forma de um papelote duro, numerado, metade branco, metade verde. Que era picotado pelo porteiro engravatado na roleta numerada que dava acesso ao interior das instalações.

Rapazes e moças, acompanhados de seus pais, costumavam formar fervilhante torvelinho de gente nas horas de chegada e partida dos trens de passageiro. Trens que atendiam por nomes especiais : "Noturno", "Fronteira", "Serra", "Porto Alegre". A gente ficava abanando para as pessoas que partiam naquela "composição" formada por dezenas e dezenas de carros. Puxada por barulhenta e folclórica máquina a vapor, carinhosamente chamada de "Maria Fumaça". Pouco depois substituídas pelas máquinas movidas a diesel e pelos trens húngaros, que tinham até ar condicionado e lanche gratuito.

Todo fim-de-ano lá ía eu com minha família - pelo trem da "Serra" - curtir férias escolares na cidade de Getúlio Vargas, situada depois de Carazinho e antes de Marcelino Ramos. Íamos no vagão-leito, composto de duas camas beliche, o máximo em conforto para a época. Existiam carros de "Primeira Classe", com poltronas estofadas. E carros de "Segunda Classe", com bancos de madeira, ocupados pelas pessoas mais pobres, gaúchos de bota e bombacha que levavam desde galinhas enfarofadas até gaiolas com seus passarinhos de estimação. Havia o "Carro-Restaurante", onde os mais abastados faziam suas refeições, servidas por garçons de gravata borboleta. Os dois últimos carros dessas composições eram para uso dos funcionários que estavam trabalhando no trem e para uso dos Correios e Telégrafos, já que os malotes de cartas e encomendas eram predominantemente transportados pela Viação Férrea.

Meu tio, João Cassal Pizarro, era   ferroviário e agente da estação de Getúlio Vargas. Um homem admirável, simpático, gordo, que tinha uma  incrível propriedade : falava  e se fazia entender com um canário de estimação !

As lágrimas escorrem pelo meu rosto quando me lembro daquele período  de ouro dos ferroviários. Dos trens que cortavam as madrugadas da minha infância. E do meu adorável tio que falava com seu cardeal.

Tudo – infelizmente – morreu.


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